sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Obra complementar

Por volta dos meus 18 anos, enquanto andava pelas cadeiras da escola e logo a seguir à leitura da "Sibila" de Agustina, que não foi amor à primeira vista, fui convidada a ler o "Memorial do Convento" de Saramago como obra complementar a "O Judeu" de Bernardo Santareno, ainda antes de Pessoa, que até hoje não consigo desvendar. Era o último ano de liceu e só tínhamos três disciplinas (no meu caso inglês, alemão e português), o tempo era mais que muito para ler, por isso, li o livro. E, gostei!
Até hoje, foram já uns quantos os livros que li do mestre Saramago. É assim que gosto de lhe chamar, pois, é assim que o vejo, como um mestre, com uma escrita preenchida de um humor muito peculiar resultante do afastamento geográfico de que goza. O distanciamento ajuda-nos a perceber algumas falhas no nosso povo, no nosso país natal, que nem por isso tem de ser a nossa pátria ou sequer o lugar onde nos sentimos bem.
Já ouvi dizer que não gostam dele, porque não mora cá, porque se foi embora e voltou as costas ao seu país. Fico sem palavras mas rindo sempre perante esta pequenez. Os meus pais emigraram, e eu continuo a gostar deles.
Adiante.
Falava de livros e dos livros de que gosto e, para o caso vem o facto de eu gostar deste autor e de todos os livros que li dele à excepção do "Evangelho...". Não li todos o que escreveu entenda-se, gostei dos que li, é tudo. Prefiro um Saramago a um Garcia Marquez ou a um Kundera, que também têm, com certeza o seu interesse. Questões de maturidade, costumo pensar.
Sempre que falo nele e digo que estou a lê-lo, vem à baila a forma como escreve, que torna quase imperceptível distinguir onde começa e acaba um pensamento, ou uma fala de uma personagem. Depois de conseguir entruzar-me com a escrita de Saramago e a sua opção por uma estrutura mais livre consigo divertir-me e encontrar algumas preciosidades, que demonstram o quanto está lúcido e atento ao que vai acontecendo hoje, mesmo que decida contar uma história que teve lugar no século XVI. E é uma dessas preciosidades que vou encontrando no seu livro mais recente que aqui quero partilhar. É da língua que se fala e da forma como a temos vindo a tratar ultimamente, com especial atenção para os lugares que já se consideram estrangeiro por neles lá viverem tantos. Estrangeiros, entenda-se.

" É natural que a alguém lhe pareça estranho que uma estalagem que ainda se encontra em território italiano tenha um nome alemão, mas a coisa explica-se se nos lembrarmos de que a maior parte dos hóspedes que aqui vêm são precisamente austríacos e alemães que gostam de sentir-se como em sua casa. Razões afins levarão um dia a que, no algarve, como alguém terá o cuidado de escrever, toda a praia que se preze, não é praia mas é beach, qualquer pescador fisherman, tanto faz prezar-se como não, e se de aldeamentos turísticos, em vez de aldeias, se trata, fiquemos sabendo que é mais aceite dizer-se holiday's village, ou village de vacances, ou ferienorte. Chega-se ao cúmulo de não haver nome para loja de modas, porque ela é, numa espécie de português por adopção, boutique, e, necessariamente, fashion shop em inglês, menos necessariamente modes em francês, e francamente modesgeschäft em alemão. Uma sapataria apresenta-se como shoes, e não se fala mais nisso. E se o viajante pudesse catar, como quem cata piolhos, nomes de bares e buates, quando chegasse a sines ainda iria nas primeiras letras do alfabeto. Tão desprezado este na lusitana arrumação que do algarve se pode dizer, nestas épocas em que descem os civilizados à barbárie, ser ele a terra do português tal qual se cala."

in, A Viagem do Elefante, José Saramago (pp. 233,234)
Assim que terminar a viagem deste elefante salomão vou ter saudades do próximo livro que o mestre ainda escreverá lá em lanzarote, .

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